Quarenta e dois anos depois, “Laranja Mecânica” (1971) do diretor Stanley Kubrick continua urgente e moderno. Como todos os filmes do diretor, “Laranja Mecânica” que transmitir muito mais do que conta a narrativa: uma história sobre uma sociedade distópica aterrorizada por gangues juvenis sob um Estado que planeja resolver seus problemas políticos através de uma técnica de lavagem cerebral. O verdadeiro núcleo simbólico do filme somente poderia ser compreendido através da chamada “Trilogia Star Child” sugerida pelo cineasta e escritor canadense J. F. Martel, composta por “Dr Fantástico”, “2001: Uma Odisséia no Espaço” e “Laranja Mecânica”. Esse núcleo espiritual e místico da trilogia é que manteria esses filmes atemporais como verdadeiros arquétipos contemporâneos.
Certa vez Kubrick disse para o ator Jack Nicholson: “Nós não estamos interessados em fotografar a realidade. Nós estamos interessados em fotografar a fotografia da realidade”. Talvez isso explique porque, quarenta e dois anos depois, o filme “Laranja Mecânica” continue atual e com um mesmo caráter de urgência: o filme possui uma estranha atmosfera atemporal como se a sua narrativa ocorresse em um mundo alternativo, análogo ao nosso. A cenografia sugere um futuro ao mesmo tempo familiar e estranho, onde os detalhes banais do cotidiano são distorcidos.
Foi lançado em 1971, com linhas de diálogos que seguem à risca a linguagem do livro original de Burguess de 1962 (mistura de gírias, inglês shakespeariano e expressões comuns), mas com um visual que parece de 2013. A pontuação musical é variada, indo da Nona Sinfonia de Beethoven à canção “Singin’ in the Rain”. Em outras palavras, a atemporalidade de “Laranja Mecânica” vem da sua deliberada hiper-realidade. Seu centro parece ser místico, como se Kubrick quisesse capturar algo de arquetípico, gnóstico, que transcende o tempo e o espaço: a própria configuração psíquica.
Certa vez Kubrick disse para o ator Jack Nicholson: “Nós não estamos interessados em fotografar a realidade. Nós estamos interessados em fotografar a fotografia da realidade”. Talvez isso explique porque, quarenta e dois anos depois, o filme “Laranja Mecânica” continue atual e com um mesmo caráter de urgência: o filme possui uma estranha atmosfera atemporal como se a sua narrativa ocorresse em um mundo alternativo, análogo ao nosso. A cenografia sugere um futuro ao mesmo tempo familiar e estranho, onde os detalhes banais do cotidiano são distorcidos.
Foi lançado em 1971, com linhas de diálogos que seguem à risca a linguagem do livro original de Burguess de 1962 (mistura de gírias, inglês shakespeariano e expressões comuns), mas com um visual que parece de 2013. A pontuação musical é variada, indo da Nona Sinfonia de Beethoven à canção “Singin’ in the Rain”. Em outras palavras, a atemporalidade de “Laranja Mecânica” vem da sua deliberada hiper-realidade. Seu centro parece ser místico, como se Kubrick quisesse capturar algo de arquetípico, gnóstico, que transcende o tempo e o espaço: a própria configuração psíquica.
Para além das leituras mais comuns ou imediatas de “Laranja Mecânica” (a denúncia de um Estado totalitário, distopia social, manipulação comportamental e política etc.), a chave de compreensão do somente pode ser alcançada colocando o filme em perspectiva, dentro da chamada “Trilogia Star Child” formada pela sequência dos filmes “Dr. Fantástico” (1964), “2001: Uma Odisséia no Espaço” (1968) e “Laranja Mecânica” (1971).
A teoria “Trilogia Star Child” foi criada pelo cineasta e escritor canadense J. F. Martel no seu texto The Kubrick Gaze. Diferente daqueles que consideram os filmes de Kubrick frios e rígidos, para Martel eles são “mercuriais, oníricos e profundamente pessoais”. A partir de “Dr. Fantástico”, a abordagem de Kubrick teria passado a ser “holográfica”: manifestações conscientes de um jogo inconsciente de forças que correm abaixo da superfície do celuloide – forças psíquicas, arquetípicas e cósmicas.
O Filme
Mas antes, vamos relembrar a história do protagonista Alex DeLarge (Malcom McDowell) em “Laranja Mecânica”. A narrativa se desenvolve em três atos. O cenário é uma cidade inglesa em algum momento num futuro próximo. O crime e delinquência são crescentes e as prisões estão lotadas. Gangues de jovens percorrem as ruas mantendo um reinado de terror. Qualquer azarado que cruzar o caminho poderá ser espancado, estuprado, roubado, assassinado ou uma combinação qualquer desses quatro. Alex, líder da sua gangue chamada “Droogs”, chama isso de “ultraviolência”. Enquanto ouve Beethoven em alto volume no seu quarto ao lado de uma serpente, Alex imagina sempre novas atrocidades que fará na próxima noite com seus amigos delinquentes juvenis.
Ansioso por liberar espaço nas prisões para criminosos políticos livrando-se dos delinquentes comuns, o governo aplica um método experimental de habilitação (a “técnica Ludovico”): ao expor o prisioneiro a inúmeras imagens de sexo e violência enquanto é injetado no corpo drogas que causam ondas de náuseas, os médicos são capazes de desenvolver uma resposta pavloviana negativa (uma sensação de afogamento e asfixia) toda vez que o indivíduo imaginar atividades imorais e ilegais. Depois, são reingressados na sociedade como uma espécie de zumbi produtivo. Enquanto isso a oposição critica em público a imoralidade de um método que ignoraria o livre-arbítrio humano.
Alex será preso e submetido à técnica Ludovico de lavagem cerebral para ser devolvido a uma sociedade violenta como um zumbi incapaz de se defender. Logo será um joguete da oposição que tenta derrubar o governo.
A Trilogia “Star Child”
O silêncio de Kubrick em relação ao significado dos seus filmes, combinado com o seu notória reclusão e aversão a jornalistas e entrevistas, só aumentou a sua aura de mistério ao longo dos anos. Por isso, sua obra e personalidade é uma das que mais atrai polêmicas e análises, como essa de J. F. Martel e sua teoria da “Trilogia Star Child”.
Em primeiro lugar, os filmes estariam conectados formalmente da seguinte forma: em “Dr. Fantástico” o filme termina em uma gigantesca nuvem de cogumelo nuclear. A destruição do planeta como resultado de um complexo militar cuja racionalidade tecnológica leva ao desfecho irracional, com a trilha musical de “We’ll Meet Again”: “Voltaremos a nos encontrar em algum dia ensolarado”, canta Vera Lynn enquanto o planeta vai pelos ares.
Esse dia ensolarado será o início do filme “2001” com o sol nascendo em uma savana africana com nossos ancestrais homens-macacos. Para Martel “os demônios de “Dr. Fantástico” só podem ser confrontados retornando às nossas origens”.
Em “2001” novamente o homem se confrontará com a tecnologia: a maior realização humana, o supercomputador HAL que controla os sistemas automáticos da nave Discovery, volta-se contra os próprios astronautas, matando-os um a um. Novamente o tema de uma máquina que, de tão autônoma, racional e perfeita, enlouquece: a variável humana seria a maior imperfeição para o seu sistema e precisaria ser eliminada.
Aqui há uma incrível coincidência, certamente sincromística: a palavra copta dos textos apócrifos gnósticos para designar a ideia de “simulação” é “hal”, lembrando a natureza de simulação do raciocínio humano do supercomputador HAL de Kubrick.
Após vencer o supercomputador demiurgo enlouquecido, o homem se confronta com seus criadores em uma das luas de Júpiter para alcançar a redenção representada pela cena final do transdimensional “star child” com o olhar fixo para o planeta Terra.
Esse olhar funde-se com o primeiro plano inicial do filme “Laranja Mecânica”, o olhar emblemático de Alex na Leiteria Korova preparando-se com seus droogs para cometer mais atrocidades. Agora o “Star Child” deve ser incorporado à sociedade, mas retorna como um personagem mercurial: pelo seu amor pela música, pela sua linguagem dramática, pelas suas roupas (com seus suspensórios e coturnos Kubrick faz de Alex uma prefiguração dos punks), torna-se um artista que dança sobre os escombros da História. O “Star Child” retorna sob o aspecto do trickster, o pícaro divino, um xamã com capacidade de transe através da qual recebe visões de violência. Ao lado da serpente – clássico símbolo xamânico – ele não traz a cura, é um feiticeiro.
Tal como na psicologia profunda de Jung, o arquétipo do trickster revela a Sombra presente em nós, que diante da qual a sociedade reage: à primeira vez tentando aprisioná-la e, depois, tentando reprogramá-la pela Técnica Ludovico. Novamente retorna o tema central da trilogia: a tecnologia tenta negar o poder visionário que nos torna humanos, produzindo uma máquina autônoma e enlouquecida ironicamente pela Razão que tenta aprisionar o ser humano: todo o sistema político, prisional e pavloviano torna-se uma autêntica “Laranja Mecânica”. Como o autor do livro original Anthony Burguess se referiu uma vez sobre o significado do enigmático título: “como algo tão orgânico, doce e saboroso pode ser jogado dentro de um frio mecanismo?”.
Uma linguagem atemporal
O que eleva esse centro místico de “Laranja Mecânica” ao caráter de arquétipo e atemporalidade é a sua linguagem cinematográfica: embora a narrativa esteja repleta de nudez e violência, as cenas de sexo não podem ser consideradas pornográficas e nem as sequências de violência são explícitas. Ao contrário de um filme do gênero exploited onde as sequências violentas são clipadas (planos curtos e em primeiros planos) com uma trilha musical pesada e percussiva, em Laranja Mecânica temos uma incômoda atmosfera pois os planos são longos (Kubrick nos obriga a encarar as ações violentas sem clipar as sequências), mas, por outro lado, há um quê de coreografia e hiper-realidade nas sequências de espancamentos e estupros. Tudo ao som de música clássica ou com a música “Singin’ in the Rain”, fazendo um contraponto irônico.
Talvez a atmosfera verdadeiramente incômoda de “Laranja Mecânica” venha da ambiguidade das imagens e narrativas: por um lado não sabemos exatamente o tom da narrativa (Humor Negro? Drama? Comédia? Tragédia?); e do outro as cenas de sexo e violência, embora impactantes, não parecem ser “reais”. Kubrick não trabalha com a clássica noção de “suspensão da realidade”, isto é, o diretor deliberadamente não pretende criar estratégias de verossimilhança – ele parece de fato interessado em fotografar a fotografia da realidade, ou seja, criar um universo alternativo de imagens atemporais, sínteses abstratas e platônicas. Por isso, “Laranja Mecânica” mantém-se urgente e atual.
Ficha Técnica
Título: Laranja Mecânica
Diretor: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick baseado no livro homônimo de Anthony Burguess
Elenco: Malcom McDowell, Patrck Magee, Michael Bates, Warren Clarke
Produção: Hawk Films
Distribuição: Warner Bros.
Ano: 1971
País: Reino Unido/EUA
Cinema Secreto: Cinegnose
A teoria “Trilogia Star Child” foi criada pelo cineasta e escritor canadense J. F. Martel no seu texto The Kubrick Gaze. Diferente daqueles que consideram os filmes de Kubrick frios e rígidos, para Martel eles são “mercuriais, oníricos e profundamente pessoais”. A partir de “Dr. Fantástico”, a abordagem de Kubrick teria passado a ser “holográfica”: manifestações conscientes de um jogo inconsciente de forças que correm abaixo da superfície do celuloide – forças psíquicas, arquetípicas e cósmicas.
O Filme
Mas antes, vamos relembrar a história do protagonista Alex DeLarge (Malcom McDowell) em “Laranja Mecânica”. A narrativa se desenvolve em três atos. O cenário é uma cidade inglesa em algum momento num futuro próximo. O crime e delinquência são crescentes e as prisões estão lotadas. Gangues de jovens percorrem as ruas mantendo um reinado de terror. Qualquer azarado que cruzar o caminho poderá ser espancado, estuprado, roubado, assassinado ou uma combinação qualquer desses quatro. Alex, líder da sua gangue chamada “Droogs”, chama isso de “ultraviolência”. Enquanto ouve Beethoven em alto volume no seu quarto ao lado de uma serpente, Alex imagina sempre novas atrocidades que fará na próxima noite com seus amigos delinquentes juvenis.
Ansioso por liberar espaço nas prisões para criminosos políticos livrando-se dos delinquentes comuns, o governo aplica um método experimental de habilitação (a “técnica Ludovico”): ao expor o prisioneiro a inúmeras imagens de sexo e violência enquanto é injetado no corpo drogas que causam ondas de náuseas, os médicos são capazes de desenvolver uma resposta pavloviana negativa (uma sensação de afogamento e asfixia) toda vez que o indivíduo imaginar atividades imorais e ilegais. Depois, são reingressados na sociedade como uma espécie de zumbi produtivo. Enquanto isso a oposição critica em público a imoralidade de um método que ignoraria o livre-arbítrio humano.
Alex será preso e submetido à técnica Ludovico de lavagem cerebral para ser devolvido a uma sociedade violenta como um zumbi incapaz de se defender. Logo será um joguete da oposição que tenta derrubar o governo.
A Trilogia “Star Child”
O silêncio de Kubrick em relação ao significado dos seus filmes, combinado com o seu notória reclusão e aversão a jornalistas e entrevistas, só aumentou a sua aura de mistério ao longo dos anos. Por isso, sua obra e personalidade é uma das que mais atrai polêmicas e análises, como essa de J. F. Martel e sua teoria da “Trilogia Star Child”.
Em primeiro lugar, os filmes estariam conectados formalmente da seguinte forma: em “Dr. Fantástico” o filme termina em uma gigantesca nuvem de cogumelo nuclear. A destruição do planeta como resultado de um complexo militar cuja racionalidade tecnológica leva ao desfecho irracional, com a trilha musical de “We’ll Meet Again”: “Voltaremos a nos encontrar em algum dia ensolarado”, canta Vera Lynn enquanto o planeta vai pelos ares.
Esse dia ensolarado será o início do filme “2001” com o sol nascendo em uma savana africana com nossos ancestrais homens-macacos. Para Martel “os demônios de “Dr. Fantástico” só podem ser confrontados retornando às nossas origens”.
Em “2001” novamente o homem se confrontará com a tecnologia: a maior realização humana, o supercomputador HAL que controla os sistemas automáticos da nave Discovery, volta-se contra os próprios astronautas, matando-os um a um. Novamente o tema de uma máquina que, de tão autônoma, racional e perfeita, enlouquece: a variável humana seria a maior imperfeição para o seu sistema e precisaria ser eliminada.
Aqui há uma incrível coincidência, certamente sincromística: a palavra copta dos textos apócrifos gnósticos para designar a ideia de “simulação” é “hal”, lembrando a natureza de simulação do raciocínio humano do supercomputador HAL de Kubrick.
Após vencer o supercomputador demiurgo enlouquecido, o homem se confronta com seus criadores em uma das luas de Júpiter para alcançar a redenção representada pela cena final do transdimensional “star child” com o olhar fixo para o planeta Terra.
Esse olhar funde-se com o primeiro plano inicial do filme “Laranja Mecânica”, o olhar emblemático de Alex na Leiteria Korova preparando-se com seus droogs para cometer mais atrocidades. Agora o “Star Child” deve ser incorporado à sociedade, mas retorna como um personagem mercurial: pelo seu amor pela música, pela sua linguagem dramática, pelas suas roupas (com seus suspensórios e coturnos Kubrick faz de Alex uma prefiguração dos punks), torna-se um artista que dança sobre os escombros da História. O “Star Child” retorna sob o aspecto do trickster, o pícaro divino, um xamã com capacidade de transe através da qual recebe visões de violência. Ao lado da serpente – clássico símbolo xamânico – ele não traz a cura, é um feiticeiro.
Tal como na psicologia profunda de Jung, o arquétipo do trickster revela a Sombra presente em nós, que diante da qual a sociedade reage: à primeira vez tentando aprisioná-la e, depois, tentando reprogramá-la pela Técnica Ludovico. Novamente retorna o tema central da trilogia: a tecnologia tenta negar o poder visionário que nos torna humanos, produzindo uma máquina autônoma e enlouquecida ironicamente pela Razão que tenta aprisionar o ser humano: todo o sistema político, prisional e pavloviano torna-se uma autêntica “Laranja Mecânica”. Como o autor do livro original Anthony Burguess se referiu uma vez sobre o significado do enigmático título: “como algo tão orgânico, doce e saboroso pode ser jogado dentro de um frio mecanismo?”.
Uma linguagem atemporal
O que eleva esse centro místico de “Laranja Mecânica” ao caráter de arquétipo e atemporalidade é a sua linguagem cinematográfica: embora a narrativa esteja repleta de nudez e violência, as cenas de sexo não podem ser consideradas pornográficas e nem as sequências de violência são explícitas. Ao contrário de um filme do gênero exploited onde as sequências violentas são clipadas (planos curtos e em primeiros planos) com uma trilha musical pesada e percussiva, em Laranja Mecânica temos uma incômoda atmosfera pois os planos são longos (Kubrick nos obriga a encarar as ações violentas sem clipar as sequências), mas, por outro lado, há um quê de coreografia e hiper-realidade nas sequências de espancamentos e estupros. Tudo ao som de música clássica ou com a música “Singin’ in the Rain”, fazendo um contraponto irônico.
Talvez a atmosfera verdadeiramente incômoda de “Laranja Mecânica” venha da ambiguidade das imagens e narrativas: por um lado não sabemos exatamente o tom da narrativa (Humor Negro? Drama? Comédia? Tragédia?); e do outro as cenas de sexo e violência, embora impactantes, não parecem ser “reais”. Kubrick não trabalha com a clássica noção de “suspensão da realidade”, isto é, o diretor deliberadamente não pretende criar estratégias de verossimilhança – ele parece de fato interessado em fotografar a fotografia da realidade, ou seja, criar um universo alternativo de imagens atemporais, sínteses abstratas e platônicas. Por isso, “Laranja Mecânica” mantém-se urgente e atual.
Ficha Técnica
Título: Laranja Mecânica
Diretor: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick baseado no livro homônimo de Anthony Burguess
Elenco: Malcom McDowell, Patrck Magee, Michael Bates, Warren Clarke
Produção: Hawk Films
Distribuição: Warner Bros.
Ano: 1971
País: Reino Unido/EUA
Cinema Secreto: Cinegnose
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