Polêmica demais para ousadia de menos. Ainda assim, o cineasta elabora o início de uma história envolvente.
Diego Benevides
Desde que anunciou a realização de “Ninfomaníaca”, o dinamarquês Lars von Trier construiu um pequeno monstro, aliado a um poderoso marketing que especulava uma nova abordagem sexual de essência cult nas telonas. Com o seu intelecto cada filme mais aflorado e sua capacidade de sempre provocar, o cineasta não faz do longa uma revolução sexual porque sabe que isso está ultrapassado.
Sexo é comum, gostoso e faz parte da vida das pessoas. É um assunto que não deveria mais chocar ninguém, se abordado com naturalidade. Enquanto meio mundo polemizava a suposta pornografia que estaria no filme, Trier decidiu amenizar o seu olhar e apenas relatar com crueza a vida de uma ninfomaníaca em uma película que por acaso traz sexo explícito, mas que nem sempre dá tesão em quem assiste.
A despeito de ser contraditório analisar a metade de um filme, considerando que “Ninfomaníaca – Vol. II” estreia nos próximos meses, a sensação que fica é de coito interrompido. De toda forma, vamos ao que interessa nesta primeira parte da saga sexual de Trier. Na trama, Seligman (Stellan Skarsgard) encontra Joe (Charlotte Gainsbourg) ferida e desmaiada na rua. Ao recusar atendimento de uma ambulância ou da polícia, ele a leva para casa e pede explicações sobre o ocorrido. Joe afirma que precisa contar uma longa história de cunho moral para que ele entenda. A partir daí, a vida da mulher é desmembrada, quase em regime de tribunal ou de terapia, desde a juventude até seus 20 e poucos anos.
A estrutura narrativa escolhida por Trier é mais convencional do que em vários de seus filmes anteriores, ainda que se divida, mais uma vez, em capítulos (cinco nesta primeira parte). Enquanto a Joe de Gainsbourg narra detalhes sórdidos de como descobriu a sexualidade e a elevou ao patamar de vício ou doença, acompanhamos flashbacks explicativos (até demais) de outros períodos da vida da mulher. Para ela, os homens são meras peças de entretenimento e satisfação. O único que ela relaciona-se sentimentalmente é o pai, vivido por Christian Slater. Até mesmo Jerôme (Shia LaBeouf), que poderia ser considerado uma grande paixão, ganha ares de perversão, caça e conquista.
Em cada fase da vida de Joe, o público acompanha suas experiências sexuais e seu olhar diferenciado sobre o próprio corpo e sobre os companheiros. Chega a ser infantil a forma como ela seleciona, entre seus inúmeros parceiros, quem ainda a interessa ou não. São poucos os momentos de vulnerabilidade da personagem, mas essenciais para transformá-la em uma pessoa palpável, o que justifica a não espetacularização do sexo. Aliás, muitos pênis, vaginas, bundas e coitos podem ser vistos no decorrer da projeção, mas nada tão agressivo quanto disseram por aí. Não existem as intermináveis sequências de “Azul é a Cor Mais Quente” ou o excessivo voyeurismo de “Um Estranho no Lago”. Existe a natureza do sexo.
Nessa primeira parte, Charlotte Gainsbourg e Stellan Skarsgard se entregam ao disparate, sempre bem sustentados pelo roteiro de Trier, que peca apenas pelo excesso de metáforas. Mesmo que o recurso seja recorrente em sua filmografia, em “Ninfomaníaca – Vol. I” parece tão didático que perde a naturalidade diversas vezes. Acompanhar um capítulo inteiro analisando um paralelo do sexo com a pesca chega a ser cansativo. Por outro lado, a metáfora de Bach cai como uma luva para toda a trama, em um dos momentos mais inspirados do script.
Se os primeiros minutos trazem certa irregularidade, o longa ganha mais força a partir do terceiro capítulo, quando conhecemos a Sra. H interpretada por Uma Thurman. A trama finalmente engrena. Trier concede a Thurman um pouco de seu humor ácido para construir uma cena tragicômica, explorando o potencial da atriz. É interessante notar que enquanto a Sra. H surta, os demais personagens assistem passivos, sem negar a razão e sem confrontá-la. A sequência é impagável por atingir diretamente a moral não apenas dos personagens, mas do público.
Destaque também para a estreante Stacy Martin, que interpreta a Jovem Joe. Ao entregar inteiramente o corpo e a mente, Martin carrega sozinha esse primeiro filme. Ela não desperdiça o espaço que tem para brilhar e a interação com Jerôme, papel de LaBeouf, é sempre avassaladora, do primeiro ao último contato sexual. Por sinal, é muito bom ver que um diretor do nível de Trier pode visitar nuances desconhecidas de LaBeouf, que está bastante correto no papel.
Sobre a entrega (ou seria a necessidade?) de atores profissionais se submeterem ao sexo real, não deveria existir megalomania nisso. Não existe mau gosto em assistir a um coito de verdade ou parcialmente simulado, principalmente porque ninguém em cena está aparentemente desconfortável. Sabendo que o puritanismo do olhar ainda limita a apreensão do público, Trier tem cautela e evita excessos. Talvez por isso o filme pode frustrar quem esperava uma trama altamente sexual e exibicionista. Não acontece.
“Ninfomaníaca – Vol. I” acaba sofrendo duas vezes: por ser dividido e por não ser exatamente aquilo que se esperava. Mas é relativo. Continua sendo uma história típica de Lars von Trier, o que requer respeito e disponibilidade para consumi-la. É preciso ver o resto do filme para ter uma maior compreensão do que ele realmente quis contar. Vontade não vai faltar.
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Diego Benevides é editor-executivo, crítico e colunista do CCR. Jornalista graduado pela Universidade de Fortaleza (Unifor), é pós-graduando em Cinema e Linguagem Audiovisual, especialista em Assessoria de Comunicação, pesquisador em Audiovisual e educador na linha de Artes Visuais e Cinema. Desde 2006 integra a equipe do portal, onde aprendeu a gostar de tudo um pouco. A desgostar também.
Cinema com Rapadura
Diego Benevides
Desde que anunciou a realização de “Ninfomaníaca”, o dinamarquês Lars von Trier construiu um pequeno monstro, aliado a um poderoso marketing que especulava uma nova abordagem sexual de essência cult nas telonas. Com o seu intelecto cada filme mais aflorado e sua capacidade de sempre provocar, o cineasta não faz do longa uma revolução sexual porque sabe que isso está ultrapassado.
Sexo é comum, gostoso e faz parte da vida das pessoas. É um assunto que não deveria mais chocar ninguém, se abordado com naturalidade. Enquanto meio mundo polemizava a suposta pornografia que estaria no filme, Trier decidiu amenizar o seu olhar e apenas relatar com crueza a vida de uma ninfomaníaca em uma película que por acaso traz sexo explícito, mas que nem sempre dá tesão em quem assiste.
A despeito de ser contraditório analisar a metade de um filme, considerando que “Ninfomaníaca – Vol. II” estreia nos próximos meses, a sensação que fica é de coito interrompido. De toda forma, vamos ao que interessa nesta primeira parte da saga sexual de Trier. Na trama, Seligman (Stellan Skarsgard) encontra Joe (Charlotte Gainsbourg) ferida e desmaiada na rua. Ao recusar atendimento de uma ambulância ou da polícia, ele a leva para casa e pede explicações sobre o ocorrido. Joe afirma que precisa contar uma longa história de cunho moral para que ele entenda. A partir daí, a vida da mulher é desmembrada, quase em regime de tribunal ou de terapia, desde a juventude até seus 20 e poucos anos.
A estrutura narrativa escolhida por Trier é mais convencional do que em vários de seus filmes anteriores, ainda que se divida, mais uma vez, em capítulos (cinco nesta primeira parte). Enquanto a Joe de Gainsbourg narra detalhes sórdidos de como descobriu a sexualidade e a elevou ao patamar de vício ou doença, acompanhamos flashbacks explicativos (até demais) de outros períodos da vida da mulher. Para ela, os homens são meras peças de entretenimento e satisfação. O único que ela relaciona-se sentimentalmente é o pai, vivido por Christian Slater. Até mesmo Jerôme (Shia LaBeouf), que poderia ser considerado uma grande paixão, ganha ares de perversão, caça e conquista.
Em cada fase da vida de Joe, o público acompanha suas experiências sexuais e seu olhar diferenciado sobre o próprio corpo e sobre os companheiros. Chega a ser infantil a forma como ela seleciona, entre seus inúmeros parceiros, quem ainda a interessa ou não. São poucos os momentos de vulnerabilidade da personagem, mas essenciais para transformá-la em uma pessoa palpável, o que justifica a não espetacularização do sexo. Aliás, muitos pênis, vaginas, bundas e coitos podem ser vistos no decorrer da projeção, mas nada tão agressivo quanto disseram por aí. Não existem as intermináveis sequências de “Azul é a Cor Mais Quente” ou o excessivo voyeurismo de “Um Estranho no Lago”. Existe a natureza do sexo.
Nessa primeira parte, Charlotte Gainsbourg e Stellan Skarsgard se entregam ao disparate, sempre bem sustentados pelo roteiro de Trier, que peca apenas pelo excesso de metáforas. Mesmo que o recurso seja recorrente em sua filmografia, em “Ninfomaníaca – Vol. I” parece tão didático que perde a naturalidade diversas vezes. Acompanhar um capítulo inteiro analisando um paralelo do sexo com a pesca chega a ser cansativo. Por outro lado, a metáfora de Bach cai como uma luva para toda a trama, em um dos momentos mais inspirados do script.
Se os primeiros minutos trazem certa irregularidade, o longa ganha mais força a partir do terceiro capítulo, quando conhecemos a Sra. H interpretada por Uma Thurman. A trama finalmente engrena. Trier concede a Thurman um pouco de seu humor ácido para construir uma cena tragicômica, explorando o potencial da atriz. É interessante notar que enquanto a Sra. H surta, os demais personagens assistem passivos, sem negar a razão e sem confrontá-la. A sequência é impagável por atingir diretamente a moral não apenas dos personagens, mas do público.
Destaque também para a estreante Stacy Martin, que interpreta a Jovem Joe. Ao entregar inteiramente o corpo e a mente, Martin carrega sozinha esse primeiro filme. Ela não desperdiça o espaço que tem para brilhar e a interação com Jerôme, papel de LaBeouf, é sempre avassaladora, do primeiro ao último contato sexual. Por sinal, é muito bom ver que um diretor do nível de Trier pode visitar nuances desconhecidas de LaBeouf, que está bastante correto no papel.
Sobre a entrega (ou seria a necessidade?) de atores profissionais se submeterem ao sexo real, não deveria existir megalomania nisso. Não existe mau gosto em assistir a um coito de verdade ou parcialmente simulado, principalmente porque ninguém em cena está aparentemente desconfortável. Sabendo que o puritanismo do olhar ainda limita a apreensão do público, Trier tem cautela e evita excessos. Talvez por isso o filme pode frustrar quem esperava uma trama altamente sexual e exibicionista. Não acontece.
“Ninfomaníaca – Vol. I” acaba sofrendo duas vezes: por ser dividido e por não ser exatamente aquilo que se esperava. Mas é relativo. Continua sendo uma história típica de Lars von Trier, o que requer respeito e disponibilidade para consumi-la. É preciso ver o resto do filme para ter uma maior compreensão do que ele realmente quis contar. Vontade não vai faltar.
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Diego Benevides é editor-executivo, crítico e colunista do CCR. Jornalista graduado pela Universidade de Fortaleza (Unifor), é pós-graduando em Cinema e Linguagem Audiovisual, especialista em Assessoria de Comunicação, pesquisador em Audiovisual e educador na linha de Artes Visuais e Cinema. Desde 2006 integra a equipe do portal, onde aprendeu a gostar de tudo um pouco. A desgostar também.
Cinema com Rapadura
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